Dados

Questões gerais
Mídia, telecomunicações & informação
Governança e instituições políticas
Tópicos específicos
Governança da Internet
Tecnologias de Informação e Comunicação
Segurança cibernética
Localização
Brasil
Área de Influência
Nacional
Data de início
Data de término
Em andamento
Não
Tempo limitado ou repetido?
Um único período de tempo definido
Finalidade/objetivo
Tomar, influenciar ou desafiar decisões de organizações privadas
Abordagem
Consulta (por exemplo, audiências públicas)
Co-governança
Mobilização social
Espectro de participação pública
Envolver
Aberto a todos ou limitado a alguns?
Aberto a todos
Cara a cara, online ou ambos
Ambos
Tipos de interação entre os participantes
Discussão, diálogo ou deliberação
Tipo de organizador/gerente
Governo nacional

CASO

Marco Civil da Internet no Brasil: a construção colaborativa da lei 12.965/2014

Questões gerais
Mídia, telecomunicações & informação
Governança e instituições políticas
Tópicos específicos
Governança da Internet
Tecnologias de Informação e Comunicação
Segurança cibernética
Localização
Brasil
Área de Influência
Nacional
Data de início
Data de término
Em andamento
Não
Tempo limitado ou repetido?
Um único período de tempo definido
Finalidade/objetivo
Tomar, influenciar ou desafiar decisões de organizações privadas
Abordagem
Consulta (por exemplo, audiências públicas)
Co-governança
Mobilização social
Espectro de participação pública
Envolver
Aberto a todos ou limitado a alguns?
Aberto a todos
Cara a cara, online ou ambos
Ambos
Tipos de interação entre os participantes
Discussão, diálogo ou deliberação
Tipo de organizador/gerente
Governo nacional

No dia 23 de abril de 2014, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet, responsável por estabelecer “princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”.

Histórico e contexto do plano de fundo

No dia 23 de abril de 2014, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet, responsável por estabelecer “princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”. O processo de sua construção contou com a inovação da participação cidadã na elaboração da lei por meio de consultas online e remete ao ano de 2009.

Entre os motivos elencados para justificar a construção de uma lei específica para regulamentar o uso da internet no país, está a reação contrária da sociedade civil ao PL 84/1999, que versava sobre crimes cibernéticos e ficou conhecido como AI-5 Digital.

Tal projeto, que recebeu na Comissão de Educação do Senado Federal um substitutivo do deputado Eduardo Azeredo (PSDB/MG) ampliando as previsões criminais e exigindo identificação de qualquer usuário antes de utilizar a internet, foi fortemente rechaçado por ativistas por estabelecer o que foi por eles chamado de “mordaça digital” ou AI-5 digital (uma alusão ao Ato Institucional no. 5, estabelecido durante a ditadura militar brasileira de 64 e que suspendia direitos políticos e mesmo garantias constitucionais).

O conteúdo deste PL destacava os aspectos penais e tipificava crimes online. A mobilização contrária a ele foi crescente dentro de setores ligados às áreas de cultura, direitos humanos e tecnologias, especialmente após a sua aprovação no Senado e retorno à Câmara para tramitação final.

Na época, teve grande notoriedade o movimento chamado “Mega Não”, que por meio de um blog suscitou uma intensa mobilização online e uma popular petição contra o que acabou conhecido como PL Azeredo, em especial, nos pontos sobre a criminalização e a identificação obrigatória dos usuários de internet, com a guarda dos registros de navegação pelos provedores.

Essa mobilização contrária ao AI-5 Digital é um fator preponderante para explicar a disposição do governo Lula de se colocar contra o PL Azeredo e posicionar a agenda política a favor de uma regulamentação civil. Porém, tal mobilização ganha capilaridade a partir de contatos de alguns militantes com pessoas de dentro do governo e fortalece-se a partir do uso de rotinas de interação com o Estado que iam além de protestos e ações diretas, usando, nessa caso específico, da política de proximidade.

O fato, no entanto, é que o PL Azeredo respondia a um vácuo existente na legislação brasileira acerca de um regramento que garantisse clareza para os usuários e provedores sobre a privacidade dos dados e o conteúdo disponibilizado na Internet. Porém, usuários e organizações civis defendiam que, antes de estabelecer um regramento criminal, seria necessário definir um marco civil.

O governo Lula comprou essa tese. Segundo consta na plataforma web Cultura Digital, na qual foi conduzida a consulta online,

a falta de previsibilidade, por um lado, desincentiva investimentos na prestação de serviços por meio eletrônico, restringindo a inovação e o empreendedorismo. Por outro, dificulta o exercício de direitos fundamentais relacionados ao uso da rede, cujos limites permanecem difusos e cuja tutela parece carecer de instrumentos adequados para sua efetivação.

A responsabilidade sobre a regulamentação do que viria a ser o Marco Civil da Internet foi encaminhada para o Ministério da Justiça, comandado na época por Tarso Genro. Genro é um político com fortes laços com políticas participativas, que foi figura proeminente durante o estabelecimento do Orçamento Participativo em Porto Alegre e que produziu análises a respeito, defendendo a participação como uma forma mais democrática de governo, o “modo petista de governar”. Isso contribuiu para a configuração da lei a partir de uma consulta pública e de uma experiência colaborativa inédita para a construção de uma lei.

Coube à Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) coordenar o processo. O debate deu-se em ambiente online em duas fases e foi hospedado na plataforma Cultura Digital, ligada ao Ministério da Cultura e à Rede Nacional de Pesquisa (RNP), além do Twitter e canais RSS. Uma importante parceria deu-se com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (CTS), que participou do desenvolvimento e

atuou como consultor do processo.

O que passou: processo, interação e participação

O projeto foi lançado em outubro de 2009. A primeira fase, com duração de 29 de outubro a 17 de dezembro de 2009, consistiu em uma consulta pública online sobre um conjunto de princípios normativos considerados relevantes pelo governo para serem apreciados e debatidos publicamente.

O documento inicial dividia-se em três capítulos: o primeiro voltado à identificação de direitos individuais e coletivos relacionados ao uso da internet que ainda não estivessem previstos no arcabouço jurídico nacional; o segundo destacando as responsabilidades dos atores que disponibilizam conteúdo na web e a questão da neutralidade da rede; e o terceiro com ênfase nas diretrizes governamentais: referências para a elaboração de políticas públicas relacionadas à internet, como a abertura (interoperabilidade, padrões e formatos abertos), a infraestrutura e a capacitação (diretrizes relacionadas a políticas públicas de cultura, ciência e educação).

Conforme estudo de Bragatto, Sampaio e Nicolás (2015a), foram realizados 686 comentários em um ambiente deliberativo, com muita reciprocidade, respeito e argumentações. Por outro lado, percebeu-se uma concentração de parte significativa das contribuições em poucos usuários e a prevalência de uma visão libertária.

Os comentários feitos na plataforma, assim como as menções no Twitter (via hashtags ou menções diretas ao @marcocivil), contribuições recebidas por e-mail ou por trackbacks (publicadas em outros blogs estabelecendo links para a consulta) e as resoluções aprovadas na Conferência Nacional de Comunicação (que acontecia concomitantemente à primeira fase da consulta) referentes ao MCI foram compiladas e publicadas pelo governo em um documento com um total de 581 páginas.

Após essa consulta inicial, e como seu resultado, foi elaborado um segundo documento, dividido em capítulos e artigos, já no formato de um anteprojeto de lei. Assim, enquanto na primeira fase os temas eram mais gerais e fundados em princípios, na segunda já se tinha uma minuta de projeto e a discussão dava-se de modo mais específico, a partir de cada um dos artigos e parágrafos que a compunha.

Foram mantidos os três capítulos originais e somados outros dois: um para as disposições preliminares, no qual foram enunciados os princípios, fundamentos e objetivos do MCI, assim como definições determos usados, e outro para as disposições finais, onde estabelecia a defesa de interesses e direitos dos usuários.

A segunda fase da consulta online ficou aberta entre os dias 8 de abril e 30 de maio de 2010 e recebeu 1141 contribuições. Além das contribuições recebidas pela plataforma, as contribuições institucionais e pessoais encaminhadas ao ministério foram publicadas no website.

De modo geral, no que tange especificamente à consulta online, pode-se afirmar que se tratou de um ambiente colaborativo baseado no respeito entre os participantes, sem uma moderação ativa, no qual houve inúmeras sugestões, proposições, argumentos, ilustrações e justificativas para as diferentes perspectivas.

Os participantes buscaram engajar-se em trocas discursivas, justificando seus posicionamentos usando diversas fontes de informação. Ocorreram extensas e qualificadas discussões sobre regulação de temas como a liberdade de expressão, neutralidade da rede e privacidade dos usuários e de seus dados, entre outros.

Há fortes indícios de que apenas um público especializado efetivamente interessou-se em participar destas duas fases da consulta. Ocorreu um formato aberto baseado na autosseleção de interessados, isto é, o fato de depender de um interesse próprio dos cidadãos anterior à consulta pode gerar distorções à participação, uma vez que indivíduos com maior status socioeconômico tendam a ter mais recursos para participarem (SMITH, 2009) e que aqueles já envolvidos tendem a reforçar ainda mais sua vinculação com o tema. Porém, esta característica, rotineira em projetos de consulta online ou de deliberação online, precisa ser ponderada sob a chave da ampliação de debates, uma vez que esse tipo de formulação de leis é uma prerrogativa dos poderes Executivo e Legislativo e que, de outra maneira, ficariam restritos a círculos muito menores.

Conforme presente na tese de Bragatto (2016), as entrevistas com os gestores da consulta demonstram o cuidado que houve com as sugestões dos cidadãos. A análise comprova que mais da metade das contribuições foi efetivamente contemplada no documento resultante da primeira fase e que na segunda etapa ocorreu também um razoável nível de contemplação das sugestões no documento final, no qual quase metade das propostas avaliadas foi considerada no projeto de lei enviado pelo Executivo à Câmara dos Deputados.

No caso da primeira fase, se considerarmos que boa parte das sugestões que não foi contemplada por se tratar de posições contrárias a qualquer legislação, o grau de consideração aumenta. Ou seja, em grande medida, a consulta pública parece tender aos principais requisitos para ser considerada democraticamente relevante.

A principal diferença encontrada entre as duas fases está na natureza das discussões. Como dito, pelo fato da primeira fase ser apoiada exclusivamente em princípios, as discussões foram mais abstratas e difusas. Já os debates analisados na segunda fase deram-se a partir de um projeto de lei e, portanto, as posições tinham maior concretude e materialidade. Apesar de alguns usuários serem contrários a qualquer tipo de regulação, nota-se que as diferenças de perspectivas centram-se mais nas diferentes vantagens e problemas relacionados a cada possível decisão. A segunda fase apresentou ganhos em termos de diálogo e de argumentação com relação à primeira consulta.

Especialmente numa consulta colaborativa e na qual não há votos diretos, acredita-se que o acréscimo de novas perspectivas, ideias, posicionamentos e valores por parte da sociedade é bem-vindo. Logo, além da valorização da soberania popular e da maior legitimidade da decisão política, defende-se a capacidade de tais instrumentos gerarem políticas públicas mais plurais, pois se espera conseguir informações sobre as necessidades e interesses dos diferentes atores interessados nas políticas públicas. Apesar do número de participantes nesse caso ser baixo, não se deve ignorar a importância da consulta em si, da abertura de oportunidades de participação, usando canais bem desenhados (GOMES, 2011).

Influência, resultados e efeitos

A mudança de governo entre 2010 e 2011 impactou diretamente o processo.Com a nomeação de Paulo Bernardo para o Ministério das Comunicações e de Ana Buarque de Hollanda para o Ministério da Cultura modificou-se substancialmente o apoio que o projeto tinha dentro do Executivo. Tais mudanças ministeriais fortaleceram a influência de interesses corporativos dentro do governo. Interesses esses que tinham defensores ainda mais ferrenhos dentro do Congresso Nacional, caso do setor de telecomunicações e radiodifusão. Tal quadro, que combina uma forte influência corporativa e uma falta de priorização da gestão de Dilma com iniciativas de democracia participativa, resultou no estancamento da tramitação do Marco Civil da Internet no Congresso.

Neste ambiente hostil, os militantes esforçaram-se na criação de um amplo repertório de mobilização, que conjugou ações diretas,protestos de rua, abaixo-assinados, criação de campanhas online, faicebucaços e tuitaços para sensibilizar o público, manter os já envolvidos ativos e pressionar os políticos para apoiar o projeto.

Durante três anos de tramitação do Marco Civil da Internet na Câmara dos Deputados a pressão dos movimentos manteve o projeto vivo e foi uma importante ancoragem para que ele fosse à votação. Apenas no final de agosto de 2011 foi assinada pela presidenta Dilma Rousseff a Mensagem Presidencial no. 326/2011, encaminhando ao Congresso Nacional o projeto de lei. O processo passou então a ser conduzido pelo poder Legislativo, sendo que uma comissão especial para apreciação da proposta foi criada. Foi indicado como relator o deputado Alessandro Molon (na época PT/RJ) e como presidente o deputado João Arruda (PMDB/PR).

Seguindo a lógica participativa estabelecida no âmbito do Executivo, o poder Legislativo repetiu a abertura à participação popular. Foram realizadas duas audiências públicas e seis seminários regionais presenciais em 2012. Além disso, uma comunidade virtual foi criada no portal E-democracia, ferramenta de participação da Câmara dos Deputados. Molon apresentou seu relatório em julho de 2012, embora ele não sido votado na reunião da comissão naquele mês.

É interessante observar como a lógica da democracia participativa presente na criação do MCI colide com a configuração de uma democracia representativa formal durante a sua tramitação no Congresso. Embora a experiência da consulta tenha assegurado princípios de abertura à participação, responsividade, empoderamento, transparência, o processo não se encerrava ali, pois dependia do seu encaminhamento, primeiramente, dentro do Executivo e, em seguida, no Legislativo, espaço no qual a lógica de funcionamento difere profundamente, tornando-se dependente da vontade política do Executivo e de sua capacidade de negociação.

Tal aspecto tem impacto na forma como os movimentos alteraram suas rotinas interativas. Reconhecida a consulta como uma oportunidade legítima de colocar demandas, trocar argumentos e sustentar posições, os militantes voltaram-se no período para a formulação de suas posições de modo a incidir na participação “institucionalizada” (ela é usada aqui entre aspas porque a consulta, ao contrário dos conselhos gestores ou dos planos municipais, é altamente dependente da vontade política dos governantes para acontecer, não havendo nenhum constrangimento legal que obrigue os mandatários a adotar tal expediente para a produção legislativa). Há um estremecimento em outras rotinas de interação durante essa fase. Essencialmente, a possibilidade de participação reconfigurou as exigências que estavam sendo feitas em relação ao Estado.

Porém, uma vez que o processo havia sido encerrado e que ele dependeria da disposição da cúpula governista e da aprovação do Congresso, as rotinas de interação entre movimentos sociais e Estado alteram-se de modo a intensificar o uso de táticas de pressão, a fim de chamar a atenção dos governantes. A entrada de outros grupos militantes, com laços com a defesa da democratização da mídia ou com tradicionais movimentos como o sindical, faz com que outras ações fossem utilizadas para combater movimentos corporativos e alterar a conta a favor das demandas sociais.

Em setembro de 2013, após a revelação por Edward Snowden do sistema de vigilância digital promovida pelos Estados Unidos contra governos de todo o mundo, incluindo o Brasil, o poder Executivo interviu e requereu que o projeto fosse apreciado em regime de urgência. Logo em seguida, a presidenta Dilma afirmou em seu pronunciamento durante a Assembleia da ONU em setembro de 2013 a necessidade de estabelecer um "marco civil multilateral para a governança e o uso da internet" e listou medidas que garantiriam a proteção do tráfego de dados na rede mundial.

O Marco Civil acabou sendo aprovado na Câmara dos Deputados em 25 de março de 2014 e, posteriormente, no Senado, em 22 de abril de 2014, tendo sido sancionado pela presidenta no dia seguinte, 23 de abril, durante a realização do evento “NetMundial”, encontro internacional que reuniu 85 países em São Paulo e discutiu alternativas e caminhos para uma governança mundial da internet. A lei foi evidenciada no evento como uma lei de vanguarda no que tange à proteção da privacidade dos usuários, liberdade de expressão e neutralidade da rede.

Análise e lições aprendidas

Pode-se afirmar que a lei representou uma vitória para os movimentos sociais que militam pela democracia na internet, não apenas pelo seu resultado, mas pela forma pela qual ele foi construído, tendo iniciado-se a partir de uma mobilização social contrária à regulamentação criminal da rede, passando pela elaboração colaborativa de seu conteúdo, por meio da consulta pública online, e chegando a aprovação de um texto que mantinha os princípios avaliados como fundamentais para assegurar a neutralidade de rede, a privacidade dos dados dos cidadãos e a liberdade de expressão.

Ver também

Referências

Links externos

Notas

Primeira versão 13/07/2022 por Rachel Bragatto